O jornal Folha Dirigida entrevistou a doutora em Educação Bianca Fátima Fogli, autora do livro “A dialética da inclusão em educação: uma possibilidade em um cenário de contradições”. A obra é um estudo de caso sobre a implementação da política de inclusão para alunos com deficiências na Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec).
Atualmente no cargo de subsecretária de Educação de Duque de Caxias, Bianca Fogli foi coordenadora pedagógica do Centro de Apoio Especializado à Educação Profissional (Caep)/Escola Especial Favo de Mel, em Quintino. O trabalho realizado pela instituição, que desenvolve formação profissional para estudantes com deficiência intelectual, foi a base do livro, que traz à tona o debate sobre a inclusão.
Nesta entrevista, ela fala sobre seu livro, o receio que professores ainda têm de lidar com alunos com deficiência, políticas públicas para a educação especial, formação dos docentes que atuam neste segmento, entre outros assuntos. Um dos problemas que ela destaca é a questão das condições de oferta.
Leia a entrevista que transcrevemos na íntegra:
Poderia nos falar um pouco sobre seu livro?
Ele é fruto de uma tese de doutorado, com ênfase na formação profissional da pessoa com deficiência, feita na Faetec, que tem desde educação infantil ao ensino superior, com foco na atuação profissional. A obra vem de uma política em ação. Ao mesmo tempo em que ela foi implementada, era objeto de pesquisa e investigação científica. Foi muito interessante olhar a instituição à luz desse estranhamento. A questão da pessoa com deficiência matriculada em cursos técnicos realmente é um desafio enorme. Há um questionamento por parte de vários docentes, ainda hoje, se essas pessoas têm ou não o direito de estarem matriculadas nestes cursos. É interessante observar o relato de profissionais questionando: mas cabe uma pessoa com paralisia cerebral, que tem uma dificuldade motora acentuada, fazer um curso de Patologia Clínica? Muitos profissionais perguntam: você teria coragem de dar seu braço para fazer uma coleta de sangue para uma pessoa que tem espasmos, que tem uma dificuldade motora acentuada. No final, percebemos que talvez o maior ganho que temos percebido ao final desta experiência tenha sido, para a própria instituição.
Como avalia este processo?
É um processo que entendemos muito distante ainda do necessário. A questão que observamos hoje é que a inclusão é entendida de diferentes maneiras. É um princípio educacional que entendemos como respeito à diversidade, mas deve ser trabalhado com muita clareza, para que isto não seja banalizado. Temos tentado preconizar a questão do professor especializado como uma conquista. Percebemos, durante nosso estudo, que a garantia deste profissional tem contribuído muito para minimizar estas dificuldades. O fato de a rede de ensino Faetec ter um profissional especializado, ter um professor especializado em braile, ter acesso a tecnologias, isso minimiza as barreiras. Sabemos que não resolve, pois a falta de formação do professor, muitas das vezes, dificulta.
Chamou a atenção o fato de, como a senhora relatou, haver um certo receio em lidar com o aluno portador de necessidade especial. Isso, pela sua experiência, é algo comum?
A questão da pessoa com deficiência no universo escolar inclusive tem uma diversidade extremamente diferenciada em relação ao próprio universo. O aspecto da deficiência intelectual ganha um tempero a mais. Cada deficiência tem uma natureza diferente. No próprio livro, mostramos como se deu a entrada da deficiência física, intelectual, da própria surdez e qual a dificuldade em relação a cada área. E percebemos que, na área de deficiência intelectual, a dificuldade na cognição, de poder fazer parte das classes comuns, ainda é um desafio muito grande. Estes alunos, em função de não terem a aquisição da língua escrita, muitas das vezes ainda estão restritos a um universo paralelo. Possuímos uma escola especial, que é a Escola Especial Favo de Mel, que é voltada especificamente para alunos com deficiência mental e que possui, inclusive, o certificado ISO 9000, que desenvolve um trabalho de parceria com uma instituição internacional. A instituição tem desenvolvido uma experiência que chamamos de trabalho customizado. Com ela, procuramos buscar caminhos para que se trabalhe a formação profissional da pessoa com deficiência mental.
Da experiência da Favo de Mel, o que poderia ser transplantado para uma política pública voltada para o atendimento a pessoas com deficiência?
Hoje, a Favo de Mel atua como um centro de formação profissional, vinculado com a Formação Inicial e Continuada da Faetec. Temos um trabalho de pesquisa onde vem sendo desenvolvido o que chamamos Planos de Ensino Individualizado (PEI). Esses alunos saem com um planejamento de vida independente, onde têm todo um plano de atividades em que passam a desenvolver um ensino laboral, de escola e de transição para a vida do trabalho. A escola tem cursos individualizados, um pouco na contramão do que trabalhamos com as políticas de inclusão.
Pode nos explicar melhor como é esta formação?
Fizemos, durante alguns anos, um trabalho e ouvimos das empresas algumas críticas. Embora a legislação preconize a questão da empregabilidade, as empresas reclamavam que muitos alunos que eles recebiam das escolas não estavam aptos a ocupar os postos de trabalho. Chegavam com posturas infantilizadas e não tinham preparo profissional para assumir os postos de serviço. Então, as empresas contratavam para cumprir a cota. Resolvemos, então, fazer movimento contrário. Junto ao Catálogo Brasileiro de Ocupações, constatamos que o curso de garçom que a Faetec oferece exige algumas habilidades e competências que muitos de nossos alunos com déficit cognitivo não tinham. Verificamos que não adiantava dar uma chancela de curso de garçom se ele não tinha, de fato, as habilidades necessárias de ler um cardápio, fazer todas as atividades inerentes ao ofício de garçom. Resolvemos tentar ver o que aqueles alunos poderiam fazer e, hoje, a escola oferece o curso de Cumim. Ele é um auxiliar. E aí, a escola oferece um curso de fato que aquele aluno possui as habilidades que ele realmente vai poder desenvolver em ambiente de trabalho. É uma experiência no sentido de buscar oferecer uma possibilidade real. A questão do trabalho customizado, na Favo de Mel, tem sido uma pista para pensarmos possibilidades para a formação da pessoa com deficiência intelectual.
A senhora comentou, no início, sobre a questão dos professores especializados. Isto leva a uma outra questão relativa à educação especial. Como fazer esta inclusão? Há especialistas favoráveis à inclusão nas turmas e outros que defendem a necessidade de professores especializados. Como a senhora vê este ponto?
Às vezes, há uma confusão conceitual nesta área. As coisas são complementares. Inclusão é um princípio educacional. O professor especializado é fundamental para dar suporte à educação especial. Mas, são questões que se complementam. O atendimento educacional especializado é previsto na legislação. Nossa LDB rompe com o conceito de sistema paralelo. Tínhamos, antigamente, um conceito de educação especial como um campo do saber paralelo. Hoje, tanto educação especial como educação profissional, como a educação de jovens e adultos ganharam status de modalidade. Temos dois níveis de educação: básica e superior. E a educação especial virou uma modalidade educacional. Desta forma, está presente em todos os níveis de ensino. E ela ganha um capítulo na LDB e é previsto o atendimento educacional especializado. Isso é muito importante. E a lei deixa claro o que é o professor especializado. É aquele profissional que tem formação específica, o que é diferente do professor qualificado. Este professor, durante a sua formação, teve disciplinas específicas que versam acerca da questão da diversidade, da educação especial. Agora, o especializado é o que faz uma especialização, um mestrado, por exemplo. O que percebemos, na prática: a necessidade das duas formações.
Em relação à formação de professores: o que precisaria melhorar para que ele pudesse estar em totais condições de lidar com a pessoa com deficiência na escola? O que poderia ser feito?
Existem as questões de caráter mais instrumental. São aspectos relacionados a conhecimentos específicos em relação às questões da pessoa com deficiência. Mas entendo que as maiores dificuldades ainda estão relacionadas às barreiras relacionais. Muitas das vezes, observamos as pessoas interessadas em fazer cursos de Libras, de Braile e essas questões ainda estão ligadas ao receio dos professores em lidar com este tipo de público. Isto sem falar nas barreiras de acessibilidade.
Falta preparação dos espaços acadêmicos para poder lidar com a pessoa com deficiência?
Quando falo de acessibilidade, falo em uma linha de desenho universal mesmo. Desde a questão da barreira física à barreira curricular. Do ponto de vista da barreira física, infelizmente, na área de Engenharia Civil, a legislação está bem distante do necessário. Na área da Construção Civil, há um desconhecimento das normas específicas de acessibilidade. Até observamos a rampa, mas totalmente fora da normatização que deveria ter. Outro problema são as portas, que, muitas vezes, não são do tamanho minimamente adequado. Vê-se, muito, também, bebedouros que não atendem às especificidades. Os banheiros que não têm o espaço físico para deficiente e, ou, até mesmo, quando têm, estão no 2º andar. São coisas até difíceis de se imaginar.
E no caso das barreiras curriculares: a quais a senhora se refere?
Desde a educação infantil, muitas das vezes as pessoas confundem a inclusão com a colocação de pessoas com deficiência em sala de aula. Necessariamente, quando estamos falando em inclusão, estamos nos referindo a trazer a importância da diversidade. Observamos, no ambiente escolar, o ambiente alfabetizador. É comum entrarmos em um ambiente de escola e observarmos o que o professor chama de alfabetário. Mas, não o vemos com letras em braile ou em libras, ou seja, um ambiente alfabetizador em que apareçam os diversos contextos culturais. Estar percebendo, desde a educação infantil, a presença destes signos como referência, é trazer inclusão para sala de aula. Muitas vezes, nos reportamos à inclusão como ter a pessoa naquele contexto. No entanto, isto ainda pode representar um movimento de exclusão, se ela não se faz presente, se ela não tem sentimento de pertencimento naquele grupo.
Fonte: Folha Dirigida